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11/8/2016 - Campinas - SP

Cartografia de maravilhas




da assessoria de imprensa 

Um estudo sobre a representação do maravilhoso – um apanhado de seres, povos, ilhas e países fantásticos – no imaginário medieval e renascentista, mostra como a visão de mundo pelo homem vai se modificando ao longo do período, vindo inclusive a se tornar, posteriormente, uma justificativa para o racismo e a escravidão. “Um maravilhoso imaginário” é o título da dissertação de mestrado do historiador Leonardo Meliani Velloso, que inclui uma minuciosa análise da cartografia medieval como receptáculo deste imaginário. A pesquisa teve a orientação do professor Paulo Celso Miceli, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

Leonardo Meliani aborda os chamados livros de maravilha, ou mirabilia (do verbo mirar), do final da Idade Média, que estão inseridos na antiga tradição de descrição de lugares fantásticos localizados nos extremos do mundo conhecido. “Eu analiso especialmente dois livros, As Viagens de Jean de Mandeville e o Libro del Conosçimiento(ambos do século 14), que trazem conteúdos similares, mas intenções diferentes. O primeiro é um relato de viagens e, o segundo, um livro de geografia, que se propõe a descrever todos os países conhecidos até então, com seus respectivos brasões – esta obra tem servido como referência para estudos em heráldica.”

O historiador também procura traçar as origens da representação do maravilhoso conversando com obras da Antiguidade (a exemplo de a História, de Heródoto, e História Natural, de Plínio, o Velho) e da alta Idade Média (como as Etimologias de Santo Isidoro de Sevilha). “Os livros de maravilha trazem o blêmio (homem sem cabeça e o rosto no peito) de Heródoto, o cinocéfalo (homem com cabeça de cachorro), a Fênix, o grifo (cabeça e asas de águia e corpo de leão) e outras criaturas da mitologia grega. Existe uma permanência deste imaginário que chega até as narrativas de viagem.”

Meliani reservou um capítulo para um histórico da cartografia produzida no período, seguindo a divisão em três grupos de mapas proposta pelo historiador português Luís de Albuquerque: as representações esquemáticas, o mapa T/O e os enciclopédicos (grandes atlas do Renascimento). “Os mapas esquemáticos dividem o mundo por zonas climáticas (os polos, os trópicos e o círculo equinocial). Havia a crença de que era habitável apenas a zona temperada do norte, entre o círculo equinocial e a região polar, onde estava o mundo conhecido; a zona temperada do sul também seria habitável, mas desde que se atravessasse a zona tórrida (do Equador), algo tido como impossível.”

O mapa T/O, segundo o pesquisador, também é esquemático e apresenta a Terra dividida nos três continentes então conhecidos – Europa, Ásia e África – cortados ao meio pelo Mediterrâneo e os rios que, acreditava-se, nasciam no ‘Paraíso Terrestre’ e alcançavam o Mar Oceano. “Os rios, o Mediterrâneo e o Mar Oceano formam um T e um O. Além disso, o T forma uma cruz, refletindo forte representação teológica da Terra, dada por Santo Agostinho e outros teólogos da Idade Média. É comum, também, ver os três continentes com os nomes de Sem, Cam e Jafé, ou seja, o mundo tripartido entre os filhos de Noé.”

O autor do estudo segue explicando que os mapas enciclopédicos ainda carregam esta característica esquemática (com o Mar Oceano e a representação do T rearranjada na figura de Cristo), mas já procurando representar tudo o que se conhecia sobre o mundo. “Vemos representações mais detalhadas da Europa, África, Ásia e de cidades, pessoas famosas, povos, figuras mitológicas e cenas religiosas. É comum encontrar Jerusalém do centro do mapa, devido ao imaginário de que o centro espiritual do mundo, a ‘Terra Prometida’, deveria ser também o centro do mundo físico.”

Outra representação comum apontada por Leonardo Meliani é a do “Paraíso Terrestre”, tanto nos mapas como na literatura de viagem. “Há um debate constante sobre este imaginário: alguns representam o paraíso com as figuras de Adão, Eva e a árvore do fruto proibido; outros não entendem o paraíso como um lugar maravilhoso e perfeito. A sua localização é mais um motivo de debate: se para a teologia cristã o paraíso está a leste, as tradições pagãs europeias, como a escandinava, representam este lugar maravilhoso, fértil e de enormes fortunas a oeste – a exemplo do mito da ilha de Hy-Brazil.”

Entretanto, com a chegada do homem europeu à América no final do século 15, há um deslocamento do “Paraíso Terrestre” da Ásia para a o novo continente. “O horizonte maravilhoso é deslocado, incluindo outros mitos, como o ‘País das Amazonas’, de quando sir Walter Raleigh chegou à Amazônia e registrou em seu diário a visão dos índios de cabelos longos e peles lisas, portando arco e flecha. Da mesma forma, a visão do europeu ao chegar à América é de um lugar fértil, rico em frutas, fauna e flora. Tudo isso que vemos representado nos mapas e na literatura de viagem compõe um imaginário que se propaga ao longo da Idade Média e pelo Renascimento.”

As cinco tradições
A partir do terceiro capítulo, Meliani passa a cumprir a intenção do seu estudo: mostrar como este imaginário vai se modificando ao longo do período, com suas permanências e diferenças. “Foco as cinco tradições culturais que desenham este imaginário: a tradição clássica (greco-romana), germânico-escandinava, gaélico-bretã, hebraico-cristã e a oriental. Da tradição clássica trabalho com pensadores como Heródoto, Hesíodo e Plínio, o Velho. Plínio escreveu a obra História Natural, que foi de grande influência para As Etimologias de Santo Isidoro de Sevilha, um livro lido ao longo de toda a Idade Média, o que significa dizer que este conhecimento da antiguidade se propaga, ainda que existam modificações ao longo do período.”

O pesquisador vê os escandinavos, que depois seriam os vikings a invadir a Europa Continental e as Ilhas de Bretanha, e os germânicos do norte da Europa, como povos com similaridades culturais que o levaram a agrupá-los na tradição germânico-escandinava. Pelo mesmo motivo, reuniu todos os povos da Gália e da Bretanha na tradição gaélico-bretã. “Já a tradição hebraico-cristã é de imensa importância, visto que a teologia cristã marca todo o imaginário do período. Por último, temos a tradição oriental, agrupando povos do Oriente Médio e Extremo Oriente. Poucas obras do mundo oriental chegaram à Europa, mas mais relevantes são as imagens que os ocidentais faziam do Oriente: seja do sarraceno ou árabe como inimigo da cristandade, seja do Extremo Oriente como horizonte onde se encontrariam tesouros e o paraíso terrestre.”

De seu apanhado de representações do maravilhoso nestas tradições culturais, o autor da dissertação destaca a figura do gigante, que habita o imaginário do homem do período. “Vamos encontrar o gigante nas mitologias escandinava e grega, nos livros de viagem do final da Idade Média e do Renascimento e mesmo em obras de literatura como Gargântua e Pantagruel, de François Rabelais. Também vemos os homens com particularidades físicas: além do blêmio e do cinocéfalo, podemos encontrar um homem de orelhas muito grandes, outro com o pé enorme que o protege do sol, o hermafrodita, a sereia. E os animais fantásticos: o grifo, o dragão, a serpente marinha e a quimera (mistura de animais diversos).”

Meliani abordou ainda os lugares fabulosos como o País das Amazonas e a Hiperbórea – país setentrional onde as pessoas viveriam centenas de anos. “Exemplo interessante é o reino de Preste João, um país cristão no meio do mundo muçulmano. Durante a Idade Média, uma carta de Preste João chega a alguns reis europeus, deixando-os fascinados, especialmente os portugueses, que enviam diversas expedições, todas mal sucedidas, para encontrar um reino que seria riquíssimo, onde o trono do rei era em ouro maciço e cravejado de joias – a idealização do reino cristão perfeito.”

O porquê
da representação
Ao procurar entender o porquê da representação destes lugares fabulosos, o historiador conclui que, para o imaginário medieval, não existia diferença entre o que hoje sabemos ser real e o fantasioso. “O maravilhoso era tudo aquilo que fascinava. Não se diferenciava a Fênix da águia, eram duas aves; o grifo era um animal tão fantástico quanto o elefante; Prestes João era tão impressionante quando o imperador Khan de Catai – hoje sabemos que os Khan da China existiram, ainda que não fossem como descritos por Marco Polo. Importava que fossem figuras maravilhosas.”

Voltando aos seus dois documentos principais, As Viagens de Jean de Mandeville e o Libro del Conosçimiento, Leonardo Meliani divide as descrições em três partes: homens e mulheres, animais e plantas, e cenários. “Em relação aos povos, descreve-se o que era diferente. Jean de Mandeville, ao chegar à Núbia, escreve que ‘os núbios são cristãos, porém negros’; não precisava descrever a religião dos núbios, pois seu leitor era um cristão igual, o diferente estava na pele. Da mesma forma, ao descrever os gregos, ele não vai se ater à fisionomia, mas ao cristianismo ortodoxo e seus rituais diferentes. Em lugares onde as pessoas andavam nuas, destacava-se a nudez.”

O pesquisador vê na descrição do que é diferente uma questão de alteridade, sustentando-se no conceito de François Hartog sobre as duas formas de descrever o outro: a inversão ou a diferenciação. “No caso, o outro é o oposto de mim (anti-A) ou o diferente de mim (A e B). Percebe-se ainda uma gradação. Jean de Mandeville, ao descrever povos similares, começa pelos ‘cristãos imperfeitos’ como os gregos, que celebravam a missa de forma diferente. Em seguida, o exemplo dos sarracenos, que eram de outra religião e a seguiam com retidão, podendo ser convertidos em bons cristãos. E, no último grau de descrição positiva, o Khan de Catai, que apesar de não ser cristão, era admirável e um exemplo a ser seguido pelos cristãos.”

Por outro lado, outros povos não mereciam a empatia de Jean de Mandeville, o que leva Leonardo Meliani a recorrer a um conceito de Todorov, sobre ‘o outro’ positivo e ‘o outro’ negativo. “Mandeville descreve alguns povos muçulmanos, como os beduínos, enquanto bárbaros em quem não se podia confiar; os povos antropófagos já caem no monstruoso e não são tratados como homens, ficando ao nível dos blêmios e dos cinocéfalos. Colombo, quando chega à América, vê o índio bom, possível de ser catequizado, e o índio mau, a ser escravizado. Se o negro era tão diferente, um ser inferior, para os europeus era justificável escravizá-lo. Esses discursos de negatividade e monstruosidade vão ser utilizados para justificar outros discursos que se propagam para muito além do imaginário, como a escravidão e o racismo. A ideia do meu estudo é justamente entender como este imaginário está representado e o que ele acarreta.”

Livros circulavam entre os iletrados

O historiador Leonardo Meliani sustenta que embora os livros de maravilha fossem lidos por uma elite intelectual da corte e do clero, o imaginário ali descrito também afetava a população de forma geral. “Em O Queijo e os Vermes, famoso livro de micro-história, Carlo Guinzburg conta sobre Menocchio, um moleiro perseguido pela Inquisição, que possuía vários livros, entre eles As Viagens de Jean de Mandeville. Menocchio trabalhava em um moinho, o que atesta que os livros de maravilha circulavam entre a população comum.”

Foram registradas aproximadamente 250 cópias do livro de Mandeville espalhadas pela Europa, em latim, inglês, francês, espanhol, italiano e, com o advento da imprensa, a obra se tornou ainda mais frequente. “É verdade que havia poucas pessoas letradas, mas temos a questão da oralidade, que é bastante forte na Idade Média. O próprio Marco Polo ditou as suas viagens para um escriba. O viajante voltava e simplesmente contava sobre os lugares que visitou, descrevendo suas maravi-lhas, como fazemos hoje.”

Meliani pôde confirmar a importância da oralidade medieval nos próprios livros de maravilha, sendo que a descrição do autor era tomada como autoridade, sem contestação. “Chegando à ilha de Lango, Mandeville afirma que ali está um dragão, a filha de Hipócrates, convertida na criatura mitológica: ‘Assim me disseram, pois eu não vi’, acrescenta. Não se contestava a oralidade do outro: ele não precisava ver o dragão, simplesmente porque lhe disseram que estava ali. Da mesma forma, descreveu a Fênix conforme os sacerdotes lhe contaram: que a ave fabulosa surgia de 500 em 500 anos e se deixava arder em braseiro, para em seguida renascer das próprias cinzas.”

A propósito, o pesquisador explica que há um debate se Jean de Mandeville percorreu tantos lugares, sendo quase unânime que não, e que sua própria identidade é debatida, com a hipótese de que ele seria o alter ego de outro escritor, François de Bourgogne. “Mandeville se apresenta como um cavalheiro inglês e como tal era lido. Já no primeiro capítulo de As Viagens..., afirma que descreverá o caminho para Jerusalém: sai da Inglaterra, atravessa a Europa, descreve o Oriente Médio e segue além da Terra Santa, chegando à China e a ilhas do Extremo Oriente – é uma viagem praticamente impossível para a época.”

Segundo Leonardo Meliani, era comum que os autores de livros de viagem descrevessem o que realmente viram e, também, fizessem compilações de outras obras. “Durante a Idade Média, eram práticas comuns se apropriar de outros textos ou utilizar o nome de autores já reconhecidos para valorizar o que se escrevia. O Khan de Catai de Jean de Mandeville é praticamente uma cópia do imperador descrito por Marcolo Polo. O Libro del Conosçimientotem intenção enciclopédica, descrevendo cada cidade com seu brasão do lado, mas os países são os mesmos e ambos os livros mencionam o reino de Preste João e Khan da China, assim como povos e monstros parecidos.  O autor do Libro é anônimo, mas a escrita arcaica e as cópias limitadas confirmam a hipótese de que se trata de um monge espanhol.”



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