5/8/2016 - Campinas - SP
da assessoria de imprensa
Uma pessoa alfabetizada é aquela que sabe ler e escrever; em contrapartida, o analfabeto é aquele que não domina nem escrita nem a leitura. Essas definições estão amplamente disseminadas e, mais do que isso, são adotadas como referência para políticas educacionais, avaliações de professores em sala de aula e até nos relacionamentos cotidianos, demarcando modos de interação entre as pessoas.
No entanto, por trás desses conceitos, aparentemente fundamentados em evidências empíricas, existe uma história. Uma história que não se limita às ideias e aos métodos pedagógicos, mas diz respeito à maneira como a sociedade brasileira se estrutura e que remonta ao Brasil Colônia.
Ou seja: a compreensão dos conceitos de “analfabeto” e “alfabetizado” perpassa as condições históricas, sociais e políticas que lhes dão sustentação em diferentes tempos e contextos, num processo em que são desencadeados efeitos de sentido.
Esta perspectiva, fundada na análise do discurso de Michel Pêcheux, foi o ponto de partida para as pesquisas da linguista Mariza Vieira da Silva sobre as relações entre língua, sujeito e história no discurso pedagógico e que tiveram como um de seus resultados o livro “História da Alfabetização no Brasil – Sentidos e Sujeito da Escolarização”, recém-lançado pela Editora da Unicamp.
O livro, que inaugura a coleção Espessura da Linguagem, dedicada a estudos no campo da análise do discurso, deriva da tese de doutorado de Mariza, defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) na Unicamp em 1998, sob orientação da linguista Eni Orlandi. Ao lado de Monica Zoppi-Fontana, Eni é organizadora da coleção.
“Buscamos compreender o modo peculiar como diferentes áreas constroem uma imagem do processo de escolarização e de seu sujeito”, explica Mariza. Esta imagem, acrescenta a autora, tende a se tornar uma representação normativa, amplamente difundida da alfabetização, do analfabeto e do alfabetizado.
Sujeitos em construção
Desde os primeiros trabalhos exploratórios com os discursos sobre alfabetização, a linguista observava a presença do “sujeito analfabeto” e a quase total ausência do “sujeito alfabetizado”.
Estabelecia-se então, segundo seu entendimento, uma relação entre visibilidade e invisibilidade, entre o dito e não dito, assim como uma assimetria entre eles. “Tomando como objeto de análise o dicionário, alfabetizado é aquele que sabe ler e escrever. Já o analfabeto é aquele que apresenta um estado, uma condição de analfabeto”, explica.
Essa disparidade desencadeou questionamentos que funcionaram como mote para os estudos: como a visibilidade-invisibilidade de posições de sujeito, constituídas em formações discursivas, estariam trabalhando, significando a alfabetização historicamente? Que posições seriam essas?
Para responder às perguntas, a pesquisadora e especialista em história das ideias linguísticas, analisou vários tipos de textos – desde discursos dos séculos XVI e XVII (especialmente os dos jesuítas), nos quais extrai um conjunto de formulações fundadoras do discurso sobre a alfabetização e do processo de escolarização, até textos acadêmicos e científicos sobre o tema dos séculos XIX e XX.
O leque de autores analisados é amplo e diversificado: Sergio Buarque de Holanda, Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Nelson Werneck Sodré, Serafim Leite, Gilberto Freyre, Florestan Fernandes e também teóricos clássicos da educação, como Emilia Ferreiro e Lev Vigotski.
“Mariza procura analisar as relações entre o científico, o ideológico e o pedagógico nas diferentes produções, como artigos publicados, dissertações e teses, e também livros e propostas”, esclarece Eni Orlandi.
A análise desse corpo documental deu visibilidade ao “sujeito alfabetizado”, enquanto aquele que sabe/determina que o outro é analfabeto. Em outras palavras, o “sujeito alfabetizado” se constitui por meio da escrita, definindo-se, assim, como “sujeito cidadão brasileiro”. É ele que aponta a falta inerente ao outro e, nesse movimento, o exclui da sociedade. Nessa medida, a prática pedagógica e o próprio processo de escolarização estão ligados à constituição do sujeito brasileiro.
“O que há de especial nesta reflexão é que ela se faz, sem perder nenhum detalhe sobre o conhecimento linguístico, sobre o conhecimento da escrita e o conhecimento da educação. Na relação que a autora traça entre eles, ao pensar a alfabetização como objeto discursivo, liga a prática pedagógica à constituição do sujeito brasileiro”, ressalta Eni.
Para Eni, as análises e reflexões da autora remetem à questão de como compreender os outros sentidos que os sujeitos “teimam em dar”, para além daqueles já estabelecidos – por exemplo, o padre, o colonizador – escapando à ordem estabelecida.
“Nessa equação, educar é escolarizar. E escolarizar é ler, escrever e contar em língua nacional. Como pensar, então, a escrita como inserção do sujeito do novo mundo na história, enquanto autor?”, questiona Eni. “Na relação ambígua e contraditória da aliança-traição, trazida pela colonização, vêm as letras, mas também a perda da altivez de pertencer a um povo que não se submete”.
O sujeito alfabetizado ocupa uma posição dotada de uma dimensão histórica: ao ingressar na sociedade letrada, é ele quem fala; assume a função de autor e fala sobre o outro, o analfabeto.
“No livro, tive oportunidade de analisar os modos como se constroem a autoria dos letrados em meio a ambiguidades, contradições e divisões sempre presentes em um país colonizado, escravagista”, afirma Mariza.
Apesar das contradições e divisões, é estabelecida uma relação supostamente coerente e una com a língua e a história com o objetivo de significar o mundo e a si próprio. “No caso de nosso trabalho, para significar o outro, sua contraparte necessária, o analfabeto. Ser alfabetizado é, pois, assumir uma função de autoria e construir um lugar de interpretação. No Brasil, isso tem sido para poucos”.
Nos discursos, este “outro” (o analfabeto) aparece como uma espécie de fantasma, manifestado quando a pessoa se mostra incapaz de ler e escrever conforme os “sentidos corretos” – ou seja, os sentidos considerados adequados à escola e aos sentidos dominantes, demarca a pesquisadora Mariza.
Em contraposição, os alfabetizados, os letrados, ganham visibilidade como herdeiros de uma ordem simbólica que determina o que deve ser transmitido de uma geração a outra, assim como as condições de produção, reprodução e transformação dessa herança.
“Podemos observar, aí, a contradição entre civilização e barbárie, presentes no discurso da colonização que nos marca: alfabetizados e não alfabetizados”, analisa Mariza.
Tal contradição circula em diferentes contextos, especialmente quando se discutem problemas a serem enfrentados na escolarização de determinados segmentos sociais. Nesse sentido, no período colonial, as políticas de escolarização para os períodos iniciais – escola de ler e escrever, primário, fundamental – têm como finalidade a salvação das almas dos índios; no século XIX, buscava-se a regeneração das crianças.
“Lá e ainda hoje, alguns pensam que a escola é o lugar para tirar as crianças da rua, de impedir que se entreguem a práticas ilícitas, imorais etc.”, reitera a autora.
Paralelamente, num país marcado pela heterogeneidade linguística e pela desigualdade social como é o Brasil, o sujeito e a língua eram (e continuam) a ser elementos essenciais dessa história. “Desse modo, ao transitar pelos textos analisados, foi possível construir um trajeto temático em que a alfabetização e sua história foram ressignificados para além de competências e habilidades a se adquirir”.
Sentidos em movimento
A pesquisa aponta ainda que, ao longo da história, os sentidos de alfabetizado e analfabeto se deslocaram, ora mudando, ora se mantendo. “Ler e escrever não significa mais só ler e assinar o próprio nome, embora, mesmo hoje, ainda seja tomado como referência, quase que única, principalmente nas matérias publicitárias, como alvo a se atingir”, pontua Mariza.
Buscando compreender essa movimentação, a linguista procurou acompanhar mudanças e estabilizações de sentidos – um processo no qual o “equilíbrio de tensões” possibilita a perpetuação de uma formação social, a saber, a formação social brasileira.
“Trabalhamos, então, esse processo histórico de estabilização significante da alfabetização. A aprendizagem da leitura e da escrita atua como referência básica para o imaginário do país, pois funciona, mesmo que não seja de forma consciente, no delineamento de políticas, de programas e projetos, de práticas linguísticas e pedagógicas”.
Como explica Mariza, as políticas públicas, sustentadas por teorias e práticas linguístico-sociais, determinam o “modo” de apropriação da escrita e, também, de estabelecimento de relações sociais, marcadas por conflitos, confrontos e alianças. Nesse espaço social, político, econômico de uma política pública de escolarização estabelecem-se as bases para uma relação educativa entre sujeitos. Essas relações se dão em função do real existente - quer dizer, da história e da língua - e de suas contradições.
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